Estudo mostra como vírus transmitido por mosquito se replica na célula
O mecanismo de replicação do vírus oropouche, de ocorrência no Norte do País, tem semelhanças com o do HIV
Pesquisadores acreditam que a febre oropouche é uma doença subnotificada, sendo muitas vezes confundida com outras transmitidas por insetos no Norte do País. Apesar de ser considerada de baixa gravidade, ainda não se sabe quais as consequências da infecção para o sistema nervoso no longo prazo – Foto: Divulgação / Ibcmed
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A febre oropouche é uma doença transmitida por mosquitos, de ocorrência em regiões como o Norte do Brasil, produzindo sintomas parecidos com os da dengue. Pesquisadores da USP descreveram pela primeira vez a estratégia usada pelo vírus oropouche para se replicar dentro de células humanas. Os resultados estão em artigo com colaboradores publicado na revista PLOS Pathogens.
Como mostra o estudo, logo após invadir a célula, o patógeno “sequestra” a organela conhecida como complexo de Golgi, que se transforma em uma verdadeira fábrica de vírus. Para isso, o oropouche recruta complexos proteicos da célula hospedeira chamados ESCRT (pronuncia-se “escort”), que têm a capacidade de deformar a membrana da organela, permitindo a entrada do genoma viral.
“Essa forma de sequestro do complexo de Golgi, por meio do uso de proteínas ESCRT, nunca havia sido demonstrado para nenhum outro vírus. É uma descoberta que aponta novos alvos a serem explorados na tentativa de barrar a infecção”, disse Natalia Barbosa, doutoranda na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e primeira autora do artigo. O trabalho é coordenado por Eurico Arruda e Luis L. P. da Silva, membros do Centro de Pesquisa em Virologia da FMRP e coautores do artigo.
De acordo com Silva, muito pouco é conhecido sobre os mecanismos de replicação dos vírus da família Peribunyaviridae, à qual pertence o oropouche.
“São patógenos importantes do ponto de vista da saúde pública. No Brasil, apenas o oropouche causa doenças, mas em outras regiões do mundo também são endêmicos o vírus da encefalite de La Crosse e o Crimeia-Congo, causador de febre hemorrágica. Há também membros dessa família que causam doenças em gado”, disse.
No caso do oropouche, os sintomas são parecidos com os da dengue: dores nas articulações, na cabeça e atrás dos olhos, além de febre aguda. A diferença é que em cerca de metade dos casos ocorre uma recidiva da doença após a melhora dos sintomas.
O vírus é transmitido por um mosquito de hábitos urbanos, o Culicoides paraensis, popularmente conhecido como borrachudo ou maruim. Estima-se em mais de meio milhão os casos de infecção por oropouche em surtos ocorridos em vilarejos e cidades da Amazônia, mas ele tem aparecido também em outras regiões do País, sendo considerado por especialistas um vírus emergente.
“Certamente essa doença é subnotificada, sendo muitas vezes confundida com outras arboviroses. É considerada de baixa gravidade, mas o preocupante é que ainda não sabemos quais as possíveis consequências da infecção para o sistema nervoso no longo prazo”, disse Silva.
Em experimentos in vitro, o grupo da FMRP observou que o vírus é capaz de infectar neurônios de camundongos e hamsters. Agora tentam reproduzir o experimento com células nervosas humanas.
“Aparentemente, o oropouche é capaz de infectar diversos tipos celulares, ou seja, consegue interagir com diferentes receptores encontrados na superfície das células humanas. Mas ainda não conhecemos quais são os receptores usados por nenhum membro da família Peribunyaviridae”, disse Silva.
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Metodologia
Para desvendar os mecanismos de replicação do oropouche, os pesquisadores fizeram experimentos in vitro com uma linhagem de células HeLa, a mais antiga e a mais usada em laboratórios, derivadas de células de um tumor de colo de útero humano.
“Assim que as células são infectadas, o vírus começa a produzir proteínas que atraem os complexos ESCRT da hospedeira para a membrana externa do complexo de Golgi. Essas proteínas ESCRT então pressionam a membrana da organela em direção ao interior e levam consigo o genoma viral. Desse modo o vírus brota para dentro do complexo. O mais provável é que, após algum tempo, essa organela modificada e cheia de vírus acabe se fundindo com a membrana plasmática e liberando os patógenos para o meio extracelular”, disse Silva.
Era sabido que outros vírus são capazes de recrutar a maquinaria ESCRT para se replicar, entre eles o HIV. O patógeno causador da Aids usa essas proteínas para atravessar a membrana plasmática, que separa o meio intracelular do meio extracelular. “Mas esse mecanismo nunca havia sido descrito para a invasão do complexo de Golgi por vírus”, disse Silva.
Constituída por dobras de membranas e vesículas, essa organela tem como função primordial o processamento, armazenamento e distribuição de proteínas.
“Não sabemos ao certo qual é a consequência do sequestro do complexo de Golgi para a célula hospedeira. Mas cerca de 36 horas após serem infectadas as células HeLa morrem”, disse Silva.
Em estudo anterior, coordenado por Arruda, o grupo havia mostrado que o oropouche é capaz de produzir uma proteína – chamada NSs – que induz a célula hospedeira a entrar em um processo de morte programada conhecido como apoptose.
“Essa não é uma proteína que faz parte da estrutura do vírus e não sabemos qual é a vantagem para o patógeno em matar a célula hospedeira por apoptose, mas pode ser resultado de um mecanismo de defesa. A proteína NSs é isoladamente capaz de causar apoptose, e poderia vir a ser explorada, por exemplo, para matar células tumorais”, disse Arruda.
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Possíveis alvos
Em um dos ensaios descritos no artigo da PLOS Pathogens, os pesquisadores manipularam células HeLa para elas não mais expressarem uma importante proteína do complexo ESCRT: a Tsg101. Para isso, usaram uma técnica conhecida como RNA de interferência, que consiste em inserir na célula uma pequena molécula de RNA que impede a expressão do gene de interesse.
“Essa intervenção tornou as células HeLa mais resistentes à infecção pelo oropouche. Elas demoram mais para morrer e ficam com uma carga viral bem mais baixa. Existem drogas experimentais que inibem a Tsg101 e vamos agora testar contra o oropouche”, disse Silva.
Por se tratar de uma proteína importante para o funcionamento da célula humana normal, ponderou Silva, talvez não seja possível usar no tratamento de pacientes drogas inibidoras de Tsg101 ou de outros membros do complexo ESCRT. O risco de efeitos adversos é alto.
“Mas é possível que exista uma molécula capaz de inibir a interação do vírus com a proteína humana sem barrar a atividade de Tsg101 na célula. É algo que ainda precisa ser estudado”, disse.
Outro objetivo do grupo é investigar quais são as proteínas produzidas pelo oropouche para recrutar o complexo ESCRT. “Elas também seriam potenciais alvos a serem explorados para barrar a infecção”, disse Silva.
O artigo ESCRT machinery components are required for Orthobunyavirus particle production in Golgi compartments, de Natalia S. Barbosa, Leila R. Mendonça, Marcos V. S. Dias, Marjorie C. Pontelli, Elaine Z. M. da Silva, Miria F. Criado, Mara E. da Silva-Januário, Michael Schindler, Maria C. Jamur, Constance Oliver, Eurico Arruda e Luis L. P. da Silva, pode ser lido em: http://journals.plos.org/plospathogens/article?id=10.1371/journal.ppat.1007047
Adaptado de Karina Toledo / Agência Fapesp | JORNAL USP